De uma forma extremante positiva, a proposta de reestruturação do ensino médio que está sendo discutida nas escolas da rede pública estadual vem suscitando debates e questionamentos que valorizam a tradição dos educadores do RS. Principalmente, quando esse debate ocorre de forma honesta, a partir das motivações e da realidade que o faz ser apresentado.
Infelizmente no meio dessas preocupações legítimas, circulam documentos que apresentam argumentos distantes daquilo que está sendo proposto. Em nossa opinião, essas atitudes contribuem apenas para confundir, ficando pouco explícito os verdadeiros motivos para isso, já que há uma unidade consistente em torno do objetivo dos educadores em geral, em trabalhar pela ampliação constante da qualidade da educação pública gaúcha, tão maltratada nos períodos mais recentes.
Na verdade, essas situações não são novidades, pois a manutenção do status quo é uma característica do conservadorismo que vê na universalização do ensino médio, o perigo de perder o controle ideológico sobre uma organização político-pedagógica que ainda mantém a dicotomia entre o pensar e o fazer.
Superar essa realidade tem sido a luta de muitos educadores nos mais diferentes locais de sua atuação: sejam eles a academia, as escolas de educação básica, os sindicatos ou outras entidades da sociedade civil. No entanto, a forte investida dos princípios neoliberais sobre nossas formas de organização, sobre a escola pública, sobre nossos valores e comportamentos têm exigido uma tal capacidade de luta e resistência que, por vezes, nos afasta do debate político e teórico que foi uma grande marca das lutas ocorridas contra a ditadura, com um recorte intencional para os debates havidos nos anos 80 e 90. No RS, em especial, lutar contra o neoliberalismo e suas concepções da gestão privada nas nossas escolas, a merco-escola, ocupou um tempo expressivo das nossas vidas.
No entanto, por decisão soberana do povo gaúcho, vivemos no RS um novo tempo para a educação. Um tempo cheio de desafios e possibilidades de construirmos juntos as bases de uma educação que realmente seja comprometida com as necessidades e anseios dos filhos do povo, aqueles que estão na escola pública, de forma a superar a alienação e a lançar os fundamentos necessários à construção de uma escola de qualidade social com cidadania, a qual sempre perseguimos.
É nessa perspectiva que a SEDUC apresenta a sua proposta de reestruturação do ensino médio.
ELEMENTOS CENTRAIS DA PROPOSTA DE REESTRUTURAÇÃO DO
ENSINO MÉDIO NO RS
(excertos do Documento-Base)
I – DAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS: (p. 3 e 4)
- Característica: a prática democrática se instala a partir do debate do documento-base nas escolas e com a participação da comunidade escolar.
- Objetivo do estudo e do debate: aperfeiçoar o documento.
- Meta: instituir o ensino médio, efetivamente, como etapa final da educação básica.
A LDB dispõe que a educação escolar é composta por dois níveis escolares: a educação básica e a educação superior. Enquanto permanecer o senso comum de que o ensino médio é apenas uma etapa transitória entre o ensino fundamental e a educação superior, sua função continuará esvaziada e sua importância como etapa final da educação básica, com identidade própria, comprometida. (É como a psicanálise alerta sobre os cuidados que os pais devem ter com o “filho do meio”).
- A execução desta proposta necessita de uma formação interdisciplinar que:
a) organize o currículo escolar a partir da realidade (conteúdo social);
b) revisite os conteúdos formais das disciplinas para que responda os questionamentos oriundos das relações sociais, explicitando sua constituição, finalidades e contradições;
c) concretize sua produção na perspectiva da solidariedade e da valorização da dignidade humana.
II – DO DIAGNÓSTICO SOBRE O ENSINO MÉDIO: (p. 5, 6, 7 e 8)
1. Escolaridade Líquida: (alunos na chamada “idade própria” – 15-17anos) 53,1%.
2. Alunos em defasagem idade-série: 30,5% (entre 15-17 anos, 108.995 jovens ainda estão no EF)
3. Abandono (especialmente no 1º ano): 13%
4. Reprovação no decorrer do curso: 21,7%
5. Jovens fora da escola (15-17 anos): 84 mil à14,7%
6. Necessidade de infraestrutura física nas escolas:
a) quadra de esportes: 139 escolas;
b) laboratório de ciências: 103 escolas;
c) laboratório de informática: 87 escolas
d) biblioteca: 9 escolas
e) cozinha: 9 escolas;
f) acessibilidade: 320 escolas
7. Currículo escolar: fragmentado, dissociado da realidade histórica.
8. Formação técnica:
I - apartada dos rumos do desenvolvimento do Estado
II – assentada no modelo vigente antes de 2004: formação integral perdendo espaço para lógica de separação entre o Ensino Médio e a Educação Profissional.
III – alto índice de reprovação e evasão (44%):
a) total de matrículas: 30.522
b) destas, 18 mil concentradas em apenas 6 cursos: secretariado, informática, agropecuária, administração e contabilidade que, sozinha, absorve 50% do total de matrículas.
c) cursos ofertados: 226: subseqüentes (119) / concomitantes (107)
d) 23.876 matrículas em cursos subseqüentes;
e) 6.646 matrículas em cursos concomitantes.
9. O Decreto federal nº 5.154/ 2004 e a Lei nº 11.741/ 2008 normatizam a articulação da educação profissional com o ensino médio, nas formas integrada, concomitante e subseqüente e lançam as bases de outros princípios norteadores para sua organização, nos termos estabelecidos na LDB desde 1996, artigos 35 e 36.
10. Desafio: construir um currículo que contemple, ao mesmo tempo, as dimensões relativas à formação humana e científico-tecnológica de modo a romper com a histórica dualidade que separa a formação geral da preparação para o trabalho.
11. A concepção de ensino médio integrado ao ensino técnico compreende que a educação geral é parte inseparável da educação profissional.
12. Diante dessa realidade, pela mobilização de pesquisadores, intelectuais, educadores e instituições vinculadas à educação profissional é retomada a discussão e indicada como alternativa para a supressão dessa dualidade entre cultura geral e cultura técnica uma concepção de educação unitária e universal: a educação politécnica.
III - TRABALHO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO: (p. 13 a 16)
1. trabalho: responsável pela formação humana e pela constituição da sociedade;
2. projetos pedagógicos: expressam as necessidades educativas determinadas pelas formas de organizar a produção e a vida social;
3. desafio: desenvolver consciências críticas capazes de compreender a nova realidade e organizar-se para construir a possibilidade histórica de emancipação humana;
4. politecnia: princípio organizador da proposta de ensino médio.
Uma análise apressada tende a simplificar os reais desafios sobre os quais se assentam essa proposta de reestruturação do ensino médio, reduzindo-as à necessidade de adaptar a educação às mudanças impostas pelo mundo do trabalho.
Um equívoco deste porte revela, no mínimo, o desconhecimento do acúmulo que o pensamento e os estudos da esquerda vêm construindo ao longo do tempo. Um acúmulo assentado na teoria marxista, onde a práxis é o processo através do qual se constrói o conhecimento. Assim, o ponto de partida para essa produção são os homens em sua atividade real, no trabalho – a ciência real começa na vida real, na atividade prática.
Se é a prática que oferece o objeto do conhecimentos, é também ela que fornece o critério de sua veracidade: “o problema da possibilidade de atribuir-se ao pensamento humano uma verdade objetiva não é um problema teórico, mas sim um problema prático. É na prática que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder de seu pensamento” (Marx, II Tese sobre Feuerbach)
5. A Politecnia e a Organização curricular:
a) novas formas de seleção e organização dos conteúdos a partir da prática social;
b) contemplar o diálogo entre as áreas de conhecimento;
c) primazia do significado social do conhecimento sobre os critérios formais inerentes à lógica disciplinar;
d) quebra de paradigmas por meio do trabalho coletivo;
e) na educação profissional, implica na integração dos conteúdos de formação geral e formação profissional, mediante a construção de itinerários formativos;
f) o ponto de partida para essa construção são os processos de trabalho, de modo a superar a lógica disciplinar e a superposição de conteúdos, para os quais novas formas de seleção e organização dos conhecimentos serão necessárias.
(...) O ensino politécnico, como síntese superadora tanto do academicismo clássico quanto da profissionalização estreita, à medida que compreende a educação intelectual, corporal e tecnológica (aquisição dos princípios científicos geris do processo produtivo e das habilidades instrumentais básicas dos diferentes ramos industriais), permite superar os limites da divisão do trabalho promovendo a reunificação entre trabalho intelectual e instrumental, entre ciência e técnica, entre formação geral e formação profissional. Desta forma, o ensino politécnico supõe o domínio dos conhecimentos científicos que regem os modos de fazer das diferentes atividades produtivas. (...) a escola politécnica “não quer dizer uma escola onde se estudam muitos ofícios, mas onde se ensina as crianças a compreender a essência dos processos de trabalho, a substância da atividade laboriosa do povo (...)” Nesta forma de conceber a politecnia, não tem lugar o ensino da física ou da matemática ou da história em si mesmos, como se fossem áreas de conhecimento independentes e auto-suficientes. (Kuenzer, 1988)
IV – PRINCÍPIOS ORIENTADORES: (p. 17, 18)
1. Relação Parte-Totalidade: processo e exercício de transitar pelos conhecimentos científicos e dados da realidade, viabilizando a construção de novos conhecimentos, responsáveis pela superação da dificuldade apresentada.
2. Reconhecimento de Saberes: a centralidade das práticas sociais como origem e foco do processo de processo de conhecimento da realidade. A escola é o espaço por excelência da promoção do diálogo dos diferentes saberes.
3. Teoria-Prática: a relação entre a teoria e a prática torna-se um processo contínuo de fazer, teorizar e fazer.
4. Interdisciplinaridade: consiste na articulação do estudo da realidade e produção de conhecimento com vistas à transformação. Numa visão dialética, objetiva integrar as área de conhecimento e o mundo do trabalho com sua origem a partir do diálogo entre as diferentes disciplinas.
5. Avaliação Emancipatória: práticas e decisões democráticas se legitimam na participação e se qualificam na reunião de iguais e diferentes, na organização de coletivos, na intermediação e superação de conflitos e na convivência com o contraditório. Que o novo fazer pedagógico abandone a prática da avaliação como instrumento autoritário do exercício do poder, como função de controle, de classificação e seleção.
6. Pesquisa: processo que, integrado ao cotidiano da escola, garante a apropriação adequada da realidade e projeta possibilidades de intervenção na realidade.
Ainda recorrendo a Kuenzer (1988), cabe destacar o método:
“a escola única de ensino politécnico, ao tomar o trabalho como princípio educativo, implica necessariamente a articulação entre teoria e prática, sob pena de negar sua proposta”.
Essa unidade se dá através do movimento da teoria para a prática e desta para a teoria; do abstrato para o concreto e de novo para o abstrato; é o movimento da parte para o todo e do todo para a parte; do fenômeno para a essência e desta para o fenômeno; da totalidade para a contradição e desta para a totalidade; do objeto para o sujeito e deste para o objeto. Todo esse movimento é, essencialmente, transformador, ao mesmo tempo do homem e das suas circunstâncias.
V – PROPOSTA DO ENSINO MÉDIO: (p. 22 a 25)
1. Proporcionalidade: a distribuição das cargas horárias de formação geral e parte diversificada não é rígida.
2. Núcleo Comum: trabalho interdisciplinar a fim de articular o conhecimento universal sistematizado com vistas à integração com o mundo do trabalho.
3. Parte Diversificada: articulação das áreas de conhecimento a partir de experiências e vivências, com o mundo do trabalho
4. SEMINÁRIOS INTEGRADOS: espaços de comunicação, socialização, planejamento e avaliação das vivências e práticas do curso.
· constará na carga horária da parte diversificada;
· distribuição proporcional do 1º ao 3º ano;
· coordenação: responsabilidade do coletivo dos professores;
· destinado um % da carga horária dos professores – um de cada área de conhecimento.
5. Projetos envolvendo práticas, vivências, estágios ou visitas poderão ocorrer fora do espaço e do turno escolar, desde que prevista a respectiva ação de acompanhamento executada por um professor.
6. Projetos: problematizações dentro dos eixos temáticos transversais.
VI – ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL INTEGRADA AO ENSINO MÉDIO: (p. 27,28)
- Construção do currículo: exige a participação de todos, uma vez que é pressuposto o trabalho coletivo na escola.
- Desenvolvimento local: eixo organizador da metodologia, rompendo com a hierarquização dos conteúdos.
- Número de escolas: 73 (onde há cursos de concomitância interna).
- Característica básica: proposta única; matrícula única; ampliação da carga horária.
- Estágios Supervisionados: etapa na qual os alunos poderão articular o conhecimento teórico com a prática, previsto pelas escolas em seu projeto pedagógico.
VII – ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DO ENSINO MÉDIO CURSO NORMAL: (p. 25 e 26)
* Currículo: cada ano está organizado em blocos de áreas de conhecimento, enfoque ou temática cujo planejamento coletivo dos professores desencadeará ações dos educandos na nova organização de tempos e espaços, pequenos e grandes coletivos consagrados na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental.
VIII – ETAPAS DA CONFERÊNCIA:
* Espaços de caráter propositivo para contribuições e aprofundamentos, coerentes com o Documento-Base, as Diretrizes Curriculares Nacionais e a LDB.
Tudo está para ser feito. O ano de 2012 será um rico período e, nossas escolas, um privilegiado espaço para, coletivamente, construirmos o caminho na caminhada, com tensionamentos, dúvidas, problematizações, debates e muitos, muitos avanços que garantam a universalização do ensino médio agora, também, um direito básico da cidadania.
Porto Alegre, outubro de 2011.
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